“A atividade erótica não tem sempre, abertamente, esse aspecto nefasto, não é sempre essa fissura. Mas, profunda, secretamente, essa fissura, específica da sensualidade humana é a mola do prazer. Aquilo que na apreensão da morte nos tira o fôlego é o mesmo que, de qualquer modo, no momento supremo, nos corta a respiração” (BATAILLE, 1988, p. 91).
O dezembro vermelho marca um mês de campanha e mobilização na luta contra o HIV, Aids e outras ISTs (infecções sexualmente transmissíveis). Criado em 1988 pelo Ministério da Saúde, seguindo orientações da ONU, o Dia Mundial de Luta Contra a Aids é celebrado anualmente no dia 1º de dezembro.
Muito se tem caminhado no sentido de uma conscientização em massa, seja ela preventiva ou na busca por sensibilizar a população quanto à segregação que as pessoas soropositivas têm sofrido nas últimas décadas. Embora vejamos mudanças positivas no acesso à informação, ainda há um entrave, um incômodo, um desconforto coletivo ao olhar para essa questão. Do que será que eu posso estar falando?
Um dos obstáculos que acredito dificultar os avanços que gostaríamos de ver nessa área, é justamente a relação com a própria sexualidade. O quanto a história da sexualidade humana é permeada por outros atravessamentos, nem sempre correspondentes ao prazer, ao erótico. Até que ponto o surgimento de doenças que relacionem o sexo à morte, a vergonhas, à moralidade, a proibições ou à religião não dificultam nosso modo de vivê-la de forma mais saudável e plena?
Eu poderia trazer o assunto do HIV e das ISTs de diversas formas para o campo psicanalítico. Uma delas pela via do narcisismo, isto é, do rompimento de um ideal de eu. Porém, me parece ainda insuficiente para a produção de insights rodear o assunto a partir desse prisma. A ferida narcísica trazida pelo HIV não é exclusiva dessa doença, ao trazer um rompimento entre o nosso narcisismo e a ideia de vida perfeita, idealizada, eterna. Existem muitas outras condições físicas e emocionais que também se ocupam disso. Portanto, decidi percorrer outros caminhos, buscando espremer de nossas psiques um pouco mais de conteúdo, assim como fazemos com uma laranja que já não oferece mais suco e a apertamos pelo lado inverso.
O questionamento que me surgiu diz com os estigmas das ISTs (incluo aqui o HIV, por ser uma delas) não constituírem um mero deslizamento estrutural da lógica proposta pela cultura judaico-cristã, que não raro destoa da realidade. A transgressão de Eva foi morder o fruto proibido, assim como em Sodoma e Gomorra, os atos homossexuais. Em ambas as histórias, há um “pecado imperdoável”, castigado pela lei divina de causa e efeito. No HIV e demais ISTs, em sua grande maioria contraída por relações sexuais, a trama vira nó e confunde as pessoas nesse sentido. Repetimos a história contada como um mantra: “A transgressão de Eva foi morder o fruto proibido”. Se ele era uma delícia, por que Eva não poderia experimentá-lo? A atividade sexual faz parte da existência humana, mas ainda existe uma sombra que herdamos e carregamos em nós que insiste em conduzir-nos à punição pelos nossos perigosos desejos.
E como vemos isso nas fantasias de muitos de nossos pacientes; de que o mal está mais próximo cada vez que o sujeito se aproxima do prazer! Fantasia essa que se torna realidade no momento em que o exame positiva. Mas como ajudá-los a se separar dessa mácula mítica de que uma ameaça sempre está à espreita em um momento de deleite? Uma marca simbólica que impede sonhos, como o de gerar uma família, de poder ser espontâneo ao se relacionar afetivamente com alguém, de poder não ser excluído socialmente, de cogitar a possibilidade de pertencer… Fossem meras fantasias, a solução seria mais fácil. Mas muitos dos medos decorrentes do estigma encontram eco na realidade, confirmando, portanto, o desfecho fantasioso negativo; um teatro de culpabilização que demanda um novo roteiro e direção. Realidade esta que nós todos, enquanto humanidade, ajudamos a construir.
O simbolismo que apresento por meio da história de Eva e da maçã é só um exemplo de inúmeros na nossa história, que formam nossa herança não só intergeracional, quanto também filogenética, que têm forças maiores que as ondas dos mares, que nos atravessam por milênios, de geração em geração, e quando percebemos, fazem parte de todos nós. Foram se misturando na argamassa da construção cultural da humanidade à medida que fomos erguendo os tijolos que construíram o que entendemos sobre o mundo hoje. Foucault (1979) nos traz brilhantemente, na obra “História da Sexualidade I”, o quanto de culpa e de peso se valeram as instituições mais importantes de cada momento da história, quando usaram discursos poderosos para controlar o indivíduo e a população através do sexo. O controle pela repressão. E o quanto desses discursos nos perseguem como fantasmas intergeracionais, por meio de uma hereditariedade psíquica, nos causando diversas formas de adoecimento.
Adoecimento que aparece na nossa forma de pensar sobre o sexo, sobre sexualidade, sobre se relacionar, sobre nossa relação com o prazer, e por que não, com nossa finitude.
O medo da morte e de receber a marca invisível da exclusão coloca em segundo plano a inteligência racional individual que permite a conexão com os saberes científicos (técnicas de prevenção, tratamentos e possíveis curas) para privilegiar fantasias de contágio, de não querer estar próximo de alguém que possa gerar um sofrimento inconcebível para nosso self, através de uma contaminação, de um convite para uma morte precoce.
Podemos relacionar essa concepção com outras formas de distanciamento daquilo que nos assusta, como, por exemplo, falas defensivas e carregadas de significado, como, ”não tenho nada contra, sou até amigo deles”. Frase nociva que pode ser ouvida direcionada para qualquer grupo minoritário: negros, gays, travestis… Mas para soropositivos, o que nos enlaça é diferente. “A marca” do estigma é mais invisível, não tem cor, não tem classe social, não tem orientação sexual. A régua está igual para todos. E isso pode ser o que toca indubitavelmente a humanidade. Que gera ainda mais distanciamento e medo de aproximação do assunto.
Ao ler esse texto, uma pessoa soronegativa pode estar pensando: “estou achando muito bacana as reflexões para entender essas pessoas”. Paralelamente, seria importante dar um passo adiante: “quero usar deste assunto para entender como eu gostaria de ser tratado e viver se eu estivesse nessa condição”. No momento em que conseguimos fazer essa conversão de perspectiva, é possível ampliar nossa visão, e acredito que possamos assim mudar a realidade de quem ainda sofre por essas “marcas”.
Será necessário vivenciarmos uma experiência para de fato conseguirmos nos sensibilizar? Creio que não. Enquanto psicanalistas trabalhamos com demandas, muitas vezes, bem diferentes das nossas. E conseguimos ter uma escuta sensível, não julgadora e segura para o processo analítico. Então, é possível .
Freud questiona em “Totem e Tabu” (p. 159): “Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?”. Eu arriscaria dizer que um dos meios mais poderosos e necessários para a mudança do estigma aqui narrado, pode ser a do estado mental de empatia permanente.
Empatia: palavra que, embora muito batida no nosso meio psi, é ainda muito poderosa, pois se revela a nossa pedra mais preciosa, mas que ainda requer que seja lapidada por nós psicoterapeutas e pela humanidade, para que possa se manifestar em sua forma mais plena e efetiva.
Referências (assim como recomendações de leitura):
BATAILLE, G. O erotismo. 3 ed. Lisboa: Editora Antígona, 1988
FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977.
FREUD, S. (1896). A hereditariedade e a etiologia das neuroses. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FREUD, S. (1913[1912-1913]). Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
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