Neutralidade é uma das qualidades que definem a atitude de um psicanalista. Devemos ser neutros quanto a valores religiosos, morais e sociais, de modo a não conduzirmos a psicoterapia conforme nossos valores e crenças (Laplanche & Pontalis, 1996).
Muitas vezes, ao longo de nossa formação, escutamos que todos temos preconceitos. Esta informação, em geral, é recebida como algo dado: temos preconceitos, sempre teremos e não há nada a fazer a esse respeito. Mas será que estamos olhando e tentando mudar isso em nós mesmos? Será que este é um tema do nosso tratamento pessoal, a fim de identificarmos esse funcionamento e poder entender a serviço do que está colocado desta forma em nós para que, assim como um sintoma, ele possa ter um destino diferente?
Rômulo Lander (2015) nos dá pistas para compreendermos a lógica estrutural da intolerância, sustentando que seu fundamento está na impossibilidade de manter a alteridade – característica que está calcada na capacidade do sujeito de discriminar-se do objeto. Ao não poder realizar esta discriminação, será impossível que esse sujeito possa tolerar as diferenças que usualmente existem no outro porque, ao perder a alteridade, sente estas diferenças como sendo suas, não suportando o outro como diferente. Tal funcionamento psíquico que não tolera a diferença, de acordo com o autor, tem características de uma relação narcisista com o objeto.
Entender o preconceito e como ele pode interferir em nossa neutralidade enquanto atitude analítica, é um convite a pensarmos que – por ser um ponto cego muitas vezes naturalizado pela cultura – talvez o tratamento pessoal seja apenas um dos vértices no qual ele possa ser trabalhado.
Nesse sentido, o quadripé – que inclui a supervisão, o estudo teórico e a instituição na qual estamos afiliados – pode ter um papel muito mais abrangente do que se tratarmos a questão do preconceito apenas do ponto de vista individual. Que esta temática possa ser identificada e discutida na supervisão, assim como trabalhada nos seminários. E, também, que se encontre espaços institucionais nos quais o tema possa circular entre os pares.
Pensando no polo mais vulnerável, quando um paciente busca ajuda, ele está querendo aliviar um sofrimento. A relação analítica carrega a marca da assimetria e, por se configurar desta forma, algumas microagressões decorrentes de atitudes preconceituosas egossintônicas do terapeuta podem ser vividas de maneira traumática e dificultar a continuidade do tratamento e a própria percepção do que é um trabalho analítico.
Por isso é sempre bom estarmos atentos aos nossos pensamentos, atos e falas. Podemos não ser responsáveis pelo que o outro entende, mas somos responsáveis pelo que fazemos e dizemos. Se a regra fundamental é a associação livre, como pode ser livre uma escuta fechada? Para sermos os melhores terapeutas que podemos ser, precisamos estar abertos à ampla diversidade (social, cultural, sexual, racial, religiosa – entre outras), assim como termos habilidade de entender realidades diferentes das nossas. Não basta apenas “aceitar”. É necessário compreender que as realidades diversas têm, cada qual, suas particularidades e, muitas vezes, passam por dificuldades, têm menos direitos, lidam com uma diferente expectativa de vida. Podemos sentir desconforto frente ao diferente que se apresenta em nossa clínica e precisamos compreender e aprender a lidar com o que nos inquieta e desafia – não só para qualificar o nosso trabalho, mas para que um mundo com mais tolerância possa ser construído também a partir da nossa prática psicanalítica.
Referências:
Laplanche, J; Pontalis, J. B. (1996). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
Lander, Rómulo. (2015). Tetralogía de la maldad. Caracas: Editorial Psicoanalitica.
Autoras:
Gabriela Assis Brasil, psicóloga, Membro Associado do ESIPP e coordenadora do Núcleo da Diversidade do VIVER.
Larissa Ullrich, psicóloga, Membro Efetivo do ESIPP e co-organizadora do Grupo de Relações Raciais e Psicanálise do ESIPP.
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