Na madrugada de 28 de junho de 1969, frequentadores do bar Stonewall Inn, em Manhattan, Nova York, operavam uma revolução histórica. A taverna atendia gays, lésbicas, bissexuais e transexuais, população duramente criminalizada e sujeitada a sanções sociais e violências legais no cenário estadunidense. Na época, policiais faziam habituais rondas pelos bares e pubs, submetendo à prisão e violência qualquer um que expressasse livremente seu gênero e sexualidade. Nesta fatídica madrugada, irreverentes e rebeldes, os frequentadores do bar decidiram dar outro desfecho à violência policial. Muitos concordam que Stormé DeLarverie, artista lésbica, desferiu o primeiro soco contra a polícia. Assim, montava-se uma cena icônica: os oprimidos finalmente encurralando seus opressores. A revolta inicial fermentou e seguiu-se pelos dias, reunindo protestantes clamando por direitos e respeito, insurgentes contra a subordinação. A dor, a frustração, a raiva e a humilhação deram lugar à resistência, produzindo um ponto de inflexão contra a norma que reverbera até a atualidade. Este é o marco inicial que simboliza a luta moderna por direitos da população LGBTQIAP+ e marca o Dia do Orgulho, data celebrada mundialmente.
De lá pra cá, testemunhamos algumas conquistas históricas dos direitos LGBTQIAP+ mundo afora e no Brasil. Em 2002, vimos a primeira cirurgia de redesignação sexual oferecida pelo SUS; em 2011, a união estável entre pessoas do mesmo sexo sendo reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF); em 2018, o reconhecimento do nome social; em 2019, a criminalização da LGBTQIAP+fobia. No campo da saúde, em 1990, Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista de distúrbios psiquiátricos de sua Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID). Mas foi só em 2018, 28 anos depois, que a transexualidade deixou de ser considerada doença.
A cada conquista avançada, fortes resistências tentam domar o indomável, e a violência ainda aflige aqueles subversivos que ousam desafiar a suntuosa e falicizada norma. Estes chegam aos nossos consultórios narrando suas histórias marcadas por pavores e triunfos, azares e destrezas, e sobretudo seus relatos das tentativas sofridas de denegarem seus direitos inalienáveis de ser e existir. A emergência destas experiências subjetivas nos convida a desafiar o sistema normativo do gênero-sexo-sexualidade.
Como nós, psicólogos e psicanalistas, qualificaremos nossa escuta de sujeitos marcados pelas dissidências sexuais e de gênero? Em quais seminários teóricos discutiremos Judith Butler, Thamy Ayouch, Michael Foucault, Paul B. Preciado, Patrícia Porchat e Facundo Blestcher? Quais conceitos mobilizaremos para não reproduzir os epistemicídios difundidos na cultura e na língua? Uma psicanálise articulada com o laço social contemporâneo prescinde da interlocução com os estudos queer, as teorias interseccionais, decoloniais e com o feminismo negro. À nossa vez, cabe-nos desnudar os mecanismos do ódio intrínsecos às violências como homotransfobia e racismo, salientando a incoerência e a inconsistência estruturantes da própria norma.
Isto porque mantermo-nos conectados com os horizontes da cultura, com a escuta atenta aos novos modos de sexuação e inexoráveis percursos da sexualidade, além de ser um exercício político, é nosso dever ético. Enquanto a liberdade for divisível, não passará de avanços míopes e efêmeros, para poucos. À sua vez, Marsha P. Johnson, figura emblemática nos protestos de Stonewall em 1969, deu o tom: “sem orgulho para alguns de nós, sem a libertação de todos nós”.
Ontem, temíamos o impiedoso. Hoje, enfrentamos o tirânico. E seguiremos, audaciosos, em busca de novos horizontes de justiça, emancipação e liberdade.
Autor Georges Hilal Jequis
Graduando em Psicologia pela PUCRS
Estagiário do ESIPP
Membro do Núcleo de Diversidade Sexual do VIVER
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