Como psicanalistas ou aspirantes a tais, temos em nós esse ímpeto de trilhar pelos caminhos mais obscuros com nossas lanterninhas acesas buscando cantos ainda mais sombrios para direcionarmos luz a eles. Mas será que não estamos nos esquivando de falar sobre alguns assuntos? Descobri sobre algo esse ano e com este texto resolvi compartilhar com meus queridos colegas.
Não queria diminuir a importância de falar sobre outras pautas, que com mais frequência debatemos. Mas me ocorreu que se voltasse a escrever sobre quaisquer destas, sem antes trazer à luz sobre o intersexo, me sentiria um novo Diógenes, que em pleno dia andava pelas ruas de Atenas com sua lanterna acesa na mão. O que quero dizer com a metáfora é que nunca nos esqueçamos que lanternas só são úteis e necessárias justamente onde menos conseguimos enxergar. E gostaria muito de lançar um feixe de luz sobre esse assunto que ainda muito pouco debatemos dentro do meio psicanalítico.
Faz pouco menos de um semestre que descobri, através de estudos com meus colegas do grupo de Diversidade Sexual do VIVER, sobre a intersexualidade. Pessoas intersexo sempre estiveram entre nós, mas por que me causou tanta estranheza e perplexidade em me aprofundar mais nesse assunto? Espero que nos próximos parágrafos todos os leitores possam aprender um pouco mais sobre algo que eu também não tinha conhecimento e que me senti bastante inquieto das motivações do porquê nós, profissionais de saúde mental, estivemos tão distantes dessa realidade.
Neste texto não entrarei no debate se consideraríamos o intersexo uma anomalia, como decidido pelo consenso de Chicago em 1996 com a sigla ADS (anomalia de diferenciação sexual) ou pelo entendimento anterior a este, de que se trata de um sexo intermediário.
O intersexo já foi conhecido como hermafrodita, na linguagem popular. Porém este termo, muito mal empregado, além de conter um cunho bastante pejorativo, adquirido por tempos de muita ignorância, nem mais é usado na biologia e na medicina, da onde se originou. Hoje nessas áreas se fala de “espécie monóica” e “espécie dióica”. O termo hermafroditismo foi utilizado nestas áreas no passado para designar espécies não-humanas, e se referia estritamente aquelas que apresentam dois sistemas reprodutores completos no mesmo organismo – o que não se pode generalizar em toda pessoa intersexo. Além do mais, o termo era para descrever espécies, e não indivíduos de uma espécie.
Diferente das outras letras da sigla LGBTTQQIAP+, com o “i” não estamos falando de orientação sexual como no “G”, de gays, e muito menos sobre identidade de gênero como em “T” de transexuais. Aqui estamos nos referindo inicialmente ao biológico, muito antes de qualquer relação da pessoa com o outro – seja este o mundo de pessoas ao seu redor ou a cultura.
Pessoas intersexo nascem com características sexuais (genitais, gônadas e padrões cromossômicos) que não se encaixam nas noções binárias de corpos que identificamos como masculinos ou femininos. Além disso, podem se identificar como heterossexuais, homossexuais, bissexuais ou assexuais. Podem se denominar homens, mulheres, ambos ou nenhum dos dois. E muito provavelmente por essa falta de dualidade que nós os mantemos em segredo enquanto sociedade. Nós, em nossa cultura dual, do dia e da noite, do preto e do branco, do macho e da fêmea, nos perturbamos com tudo que foge a uma polarização. Mas não esqueçamos que entre o dia e a noite há outras configurações possíveis, o amanhecer e o entardecer são algumas delas. Entre o preto e o branco, há uma escala de cinza numerosa. E por que não haveria uma variedade ainda sem-nome para o que há entre o macho e a fêmea?
Nem tudo é visível aos olhos, nós enquanto psicanalistas já sabemos. Andamos com lanternas acesas por algum motivo. A complexidade do intersexo também está aí pra nos mostrar isso. Algumas variações cromossômicas nas pessoas intersexo não são fisicamente aparentes, só descobertas através de exames genéticos.
De acordo com a ONU, a intersexualidade está presente em até 1,7% dos recém-nascidos. Esse número pode ser muito semelhante ao número de ruivos no mundo, que se estima que seja de 1 a 2% (FREE & EQUAL UNITED NATIONS, 2014). Uso este exemplo para pensarmos quantos ruivos vimos passar por nós nos últimos anos. E quantas pessoas intersexo sabemos que existem? Essa invisibilidade está muito além do preconceito, como para os gays e lésbicas, por exemplo. Pode estar muito na nossa dificuldade humana em administrar e lidar com as faltas, com os vazios. Neste caso, o terror em ter que olhar e legitimar a existência de alguém que nos possa, com muita chance, estremecer o conforto de nossas certezas. Impossível não associar com mais uma ferida narcísica em nós, tanto enquanto pessoas, quanto psicanalistas, que geralmente possuímos a sensação de que temos acesso a “todos os segredos” dos outros.
Por outro lado, a invisibilidade e desconhecimento geral sobre o tema, pode se dar pela cultura brasileira obstétrica/pediátrica de mutilação dos recém-nascidos intersexo. Muitas pessoas mais podem ser intersexo e nunca saberão disso. Em tempos passados, a existência de homossexuais era tida pela sociedade como uma realidade distante, sempre na marginalidade, nunca dentro de suas casas. Os homossexuais, por sua vez, sempre souberam que existiam, embora a sociedade refutasse que fossem tão numerosos. Quanto aos intersexos, estes muitas vezes não sabem de sua condição. Com a realidade brasileira de procedimentos cirúrgicos precocemente, muitas famílias mantém segredo de tal informação. Sabemos como funcionam os segredos familiares, que por medo, vergonha e preconceito são levados ao túmulo, não dando a muitas pessoas a dignidade de se conhecerem pelo que são.
Em um estudo científico lusobrasileiro, foi realizado um paralelo de como é encarado o nascimento de um bebê intersexo no Brasil e em Portugal. No Brasil, a intervenção médica no nascimento destes bebês é de natureza mutilatória. Para tranquilizar a angústia de pais e médicos, o sexo do bebê precisa ser definido a fim de evitar danos psicológicos para ele no futuro.
Diferente do Brasil, em Portugal não existe essa pressa para “resolver” o sexo do recém-nascido. Por lá eles entendem que a criança, ao adultescer, decidirá o que fazer, seja para operar posteriormente, direcionando a uma identidade binária, seja como a permanecer como está (TRINDADE, 2020). A Alemanha foi o primeiro país europeu a possuir uma lei que dispensa a inclusão do sexo no registro civil de nascimento. Desta forma, os pais da criança não são obrigados a registrá-la como pertencente ao sexo masculino ou feminino. Porém nem sempre foi assim por lá, tanto juridicamente quanto na área médica. Em documentário transmitido pelo canal alemão DW (Deutsche Welle) em 2019, pode ser vista a história de um jovem alemão, já adulto, identificado com o sexo masculino, que em seu nascimento, por não apresentar nem pênis, nem clitóris, foi submetido a uma cirurgia irreversível para adaptar sua anatomia ao genital feminino. Não preciso nem falar sobre a quantidade de sofrimento que esse jovem relata de ter sido submetido a isso sem seu desejo.
Atualmente, além da Alemanha, na Austrália há um avanço nesse sentido, foi criado um status próprio para os intersexuais nos documentos, onde incluem o termo different nos documentos, ao invés de masculino e feminino. Países muçulmanos como o Afeganistão, Nepal e Paquistão já reconhecem pessoas com mais de um sexo.
Por mais que todas essas informações, ainda novas para mim, me inquietem, tem um lado que me dá esperança: nossa posição questionadora, desde os tempos da criação da psicanálise por Freud. Que possamos pensar juntos como comunidade científica e filosófica sobre a real necessidade de mutilar crianças recém-nascidas. Em nome de que se dá esse procedimento? Será que arrancariam uma parte do corpo dos homossexuais ou transexuais se descobrissem uma etiologia física, orgânica para sua diversidade? Por exemplo, se fosse descoberto, hipoteticamente, que a atração pelo mesmo sexo estivesse ligada a uma alteração no hipotálamo, se justificaria uma intervenção? É nesse ponto que quero chegar. Se não toleramos mais terapias de conversão aos homossexuais, por ter um entendimento que a homossexualidade é uma expressão diversa e natural da sexualidade humana, então por que é permitido uma mutilação genital em intersexos ainda bebês?
A cultura da nossa humanidade sempre mostrou indícios que insistimos em não enxergar: na biologia – área que Freud tanto usou como referência para embasar suas idéias – contamos com infindáveis exemplos de intersexo; na mitologia, Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, que é batizado com a junção de seus nomes; na religião africana do Candomblé, pelo Orixá “Oxumaré” com sua dualidade macho/fêmea. Mas não importa a quantidade de exemplos que a história e a cultura da humanidade nos passem. Há algo aqui que nos causa desconforto, e talvez nos assombre. É interessante pensar sobre esse ponto. Sobre uma possível cegueira coletiva para um assunto que sempre esteve presente.
Futuros estudos sobre a intersexualidade dentro da teoria psicanalítica freudiana me parecem muito importantes, para no mínimo demonstrar nossa atenção às demandas da clínica e da cultura da atualidade. Sem falar no enorme desafio de (re)pensar muitos pontos, que talvez sejam motivo da nossa resistência pelo assunto. Que não seja reproduzido o silêncio da omissão que nos foi passada sobre a população LGBTTQQIAP+. Para que enquanto psicanalistas não cometamos novas mutilações com atitudes normativas, que estigmatizam e ferem essas pessoas que já costumam passar por isso em outros setores da nossa sociedade.
Referências
FREE & EQUAL UNITED NATIONS. UN FREE & EQUAL, c2014. Disponível em: <https://www.unfe.org/intersex-awareness> Acesso em 30 de mai. de 2022
INTERSEX – REDEFINING GENDER. [S.I.: s.n.] 2019. 1 vídeo (12 min). Publicado pelo canal DW Documentary. Disponível em: <HYPERLINK “https://youtu.be/H0k31FURJPg” \hhttps://youtu.be/H0k31FURJPg> Acesso em 30 mai. 2022
LIMA, Shirley Acioly Monteiro de. Intersex and identity : history of a reconstructed body. 2007. 110 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: <HYPERLINK “https://tede2.pucsp.br/handle/handle/17233” \hhttps://tede2.pucsp.br/handle/handle/17233 > Acesso em 30 de mai. de 2022
PAULA, Ana Amélia Oliveira Reis de. Ambiguidade genital e a escolha subjetiva do sexo: Uma investigação psicanalítica sobre a intersexualidade. Orientador: Profa. Dra. Márcia Maria Rosa Vieira. – Belo Horizonte – MG, 2012. Disponível em: <HYPERLINK “http://hdl.handle.net/1843/BUBD-9UGMTX” \hhttp://hdl.handle.net/1843/BUBD-9UGMTX> Acesso em: 30 de mai. de 2022
SANTOS, Moara de Medeiros Rocha; ARAUJO, Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de. Intersexo: o desafio da construção da identidade de gênero. Rev. SBPH, Rio de Janeiro , v. 7, n. 1, p. 17-28, jun. 2004 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-08582004000100003&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 30 maio 2022.
TRINDADE, Luana Ferreira. Vivência das pessoas intersexo no Brasil e em Portugal: Uma Aproximação Psicológica Crítica. Orientador: Liliana Rodrigues. 2020. 46 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Disponível em: <HYPERLINK “https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/132206/2/442279.pdf” \hhttps://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/132206/2/442279.pdf>
UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. INTERSEX [Internet]. New York: UNFE; c2018 . Disponível em: <HYPERLINK “https://unfe.org/system/unfe-65-Intersex_Factsheet_ENGLISH.pdf” \hhttps://unfe.org/system/unfe-65-Intersex_Factsheet_ENGLISH.pdf> Disponível em 30 de mai. de 2022
Autor: Eduardo Marchioro, Psicólogo, Membro Associado do ESIPP e Membro do Núcleo de Diversidade Sexual do VIVER.
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