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Novembro azul: sobre masculinidade e autocuidado

Por que o novembro azul deveria nos provocar ainda mais debates do que provoca? Talvez porque sempre estiveram voltadas à feminilidade as inquietações de entendimento. Como se ser mulher fosse algo muito assombroso e misterioso, e o homem e seu universo masculino algo mais objetivo de se ver: preto no branco, 8 ou 80.

Fico aqui pensando se não foi uma boa desculpa de uma sociedade dominada pelo modelo do patriarcado de fugir de suas incoerências, de uma construção cultural problemática do que é pertencer ao mundo dos homens, incendiando suas frustrações nas bruxas, nas histéricas, nas feministas e por aí vai… E onde fica o calcanhar de Aquiles que nós homens tentamos a duras ganas esconder? A rachadura que muito fácil reconhecemos no “sexo oposto” e tão dificilmente na gente? Existe todo um universo que foi negligenciado, criando-se um mito de menor complexidade acerca das problemáticas masculinas, por culpa, quem sabe de nós mesmos, homens.

O que vemos muito hoje é um conjunto de construções enraizadas em lamaçais que só reproduzem discursos e comportamentos problemáticos para toda a sociedade, indiferente do gênero e idade que tenham. Da perpetuação da violência à naturalidade de uma heteronormatividade; da competitividade à objetificação das mulheres; do sexismo às concepções rígidas de gênero e papéis sexuais. É nesse último que irei me deter aqui: o quanto essas normativas do que é atribuído a um gênero e a outro podem ser prejudiciais para a saúde do homem que conhecemos hoje.

Com a iniciativa do novembro azul dá-se destaque aos cuidados para as doenças masculinas, em especial ao câncer de próstata. Todos os meses coloridos trazem iniciativas muito importantes. Mas por que esse mês azul em especial deveria nos inquietar a promovê-lo ainda mais? Diversas pesquisas apontam que os homens cuidam menos da saúde comparados às mulheres. Penso que grande parte do motivo por trás disso seja que nós, homens, ainda não sabemos o que de fato nos faz ser o que somos, pertencentes a um universo masculino.

Para Freud a masculinidade é constituída a partir das relações parentais, vide Complexo de Édipo. Mas a masculinidade “pura” continua sendo uma construção teórica de conteúdo incerto. Porque “incerto”, diria Freud em “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” (1925)? Talvez LAPLANCHE (2015) nos ajude nisso quando reflete que a criança interroga o adulto sobre essa diferença, do masculino e do feminino. Desta maneira, o adulto vai moldando o que é do universo feminino e o que é do masculino. Pode começar com a percepção da diferença dos genitais quando encontramos o diferente da gente, mas isso se segue para muito além dos genitais.

Pensar na nossa história e cultura também pode ajudar a montar esse quebra-cabeça, e eu traria em duas perspectivas: a primeira no mito de força e indestrutibilidade masculina, de o homem ser sempre retratado na posição de vitalidade, força e proteção desde os primórdios, que dificilmente em algum momento histórico foi rompida ou questionada criticamente. Se formos pegar esse recorte e trazer para o que poderia ser um simples e inofensivo check-up anual, para muitos homens, pode representar uma ameaça desse ideal masculino. Ir ao médico, “dar a chance” de perceber que a saúde não está muito boa me parece estremecer esse ideal normativo do que é ser homem, de modo que muitos possam se sentir fragilizados com sua masculinidade ao admitir essa posição vulnerável. Porém, tal vulnerabilidade é a que traz a possibilidade de se cuidar, se tratar e promover mais saúde e qualidade de vida.

A segunda perspectiva que me surgiu, que tem mais a ver com o objetivo inicial da conscientização do novembro azul, que seria um incentivo ao exame, prevenção ou tratamento precoce do câncer de próstata, foi o quanto a região de acesso para a realização do exame causa medo e vergonha em muitos homens. Medo e vergonha de uma perda do que se identifica como masculino em uma perspectiva normativa. Advinda claramente de uma aversão à possibilidade de um desejo associado a região anal, a qual está diretamente ligada a uma fantasia de homossexualidade – o que daria assunto para um novo texto.

O quanto o entendimento e a escuta psicanalítica podem nos ajudar, não só a entender, mas também a sermos agentes de mudança desta e das gerações seguintes. Esses processos de identificação com o que é masculino, feminino, ou de qualquer outra designação de gênero se dá através do outro, da cultura. E com isso, no momento em que vamos repensando a cultura, linguagens, condutas sociais, porque não conseguiríamos repensar como nós homens lidamos com nosso corpo e nossa masculinidade? Compartilho da ideia da cientista social Connell em “Políticas da Masculinidade” (1995), em que a ideia não é apagar o que construímos do que constitui o masculino ou o feminino. Mas sim tornar toda a gama do simbolismo e da prática de gênero disponível para todas as pessoas. É na possibilidade dessa plasticidade de papéis que quem sabe poderemos nos encontrar num lugar mais saudável fisicamente e psicologicamente como homens – e também como mulheres. Entender o que a masculinidade normativa nos traz de prejuízos pode ser o princípio de uma trajetória menos engessada, mais libertadora e que promova mais saúde para os homens e para a sociedade como um todo.

 

Referências e também dicas de leitura:

CONNEL, R. W. Políticas da masculinidade. Educação & Realidade, [S. l.], v. 20, n. 2, 2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71725. Acesso em: 16 out. 2022. FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925)JANUÁRIO, S. B. Masculinidades em reconstrução: Gênero, corpo e sexualidade. Covilhã: LabCom. IFP, 2016.LAPLANCHE, J. O gênero, o sexo e o sexual. In: LAPLANCHE, JEAN. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006. Porto Alegre, RS: Dublinense, 2015SILVA, S. G. Masculinidade na história: a construção cultural da diferença entre os sexos. Psicologia: Ciência e Profissão [online]. 2000, v. 20, n. 3 [Acessado 10 Outubro 2022] , pp. 8-15. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1414-98932000000300003>. Epub 11 Set 2012. ISSN 1982-3703. https://doi.org/10.1590/S1414-98932000000300003.

 

Autor: Eduardo Marchioro, Membro Associado do ESIPP

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