O desenvolvimento emocional primitivo de um bebê ocorre num processo marcado pela relação de dependência com os primeiros objetos. Conforme nomeou Winnicott, a primeira forma que assume essa relação é a dependência absoluta, quando o recém-nascido se encontra em um estado narcísico, não havendo qualquer consciência da dependência do mundo externo em que se encontra.
Com o tempo surge o estado de dependência relativa, quando a criança passa a perceber a mãe como alguém diferente dela mesma. Se inicia neste momento uma relação entre dois corpos, no qual se desenvolve gradativamente a consciência de um espaço cada vez maior fora de si mesmo, bem como se amplia a noção de tempo, que situa os acontecimentos em um antes e um depois.
Pensando nestes dois primeiros momentos evolutivos, com relação à progressiva independência da criança, pode-se pensar, conforme o nosso autor, que “muita coisa aconteceu no desenvolvimento do bebê antes que se possa falar em envolvimento. A capacidade de se envolver, é uma questão de saúde, uma capacidade que, uma vez estabelecida, pressupõe uma complexa organização do ego, que só pode ser concebida como uma proeza dos cuidados proporcionados ao bebê e à criança.” (Winnicott, 1994, p. 106)
Sublinhando o cuidado materno na aquisição das capacidades mentais da criança, Winnicott distingue dois aspectos deste cuidado: um deles, ao qual chama de ‘mãe objeto’, se caracteriza pela mãe que embala, brinca, beija e protege e o outro, de ‘mãe ambiente’, a que alimenta, limpa e arruma. Quando tudo vai bem com a dupla, a primeira mãe mostrará à criança que sobrevive ao seu impulso excitado e seu amor impiedoso, enquanto a outra função da mãe irá contemplar as necessidades básicas, de ego, da criança.
É natural neste período da dependência relativa que a criança se sinta ‘incompadecida” pelo outro (ruthlessness), ou incapaz para sentir compaixão, mas é também neste momento que vai sendo criada a capacidade de ‘concernimento’ (to concern), a partir do momento em que se torna possível dirigir a experiência erótica e agressiva ao mesmo objeto (mãe). Uma vez alcançada a ambivalência, decorrem sentimentos de culpa e anseios por reparação.
Esta ausência de compaixão ocorre antes de a criança ser capaz de se sentir concernida/preocupada com o outro, e é vital para o desenvolvimento, que o self incompadecido possa sentir-se livre para manifestar o seu “amor-apetite-primário”. A criança sente prazer nesta atividade ou brincadeira sem compaixão com a mãe e espera que ela tolere sua conduta, sem reagir de forma hostil e que logo em seguida possa receber um gesto amoroso e se recupere bem.
A integração destes dois aspectos do cuidado materno – ambiente e objeto – na mente da criança, irá liberar sua vida instintiva através do ciclo benigno em que o gesto espontâneo é oportunizado. A confiança que vai sendo experimentada transforma os sentimentos de culpa em sentimentos de envolvimento. Aí se encontra a origem da capacidade de socializar, trabalhar e contribuir.
Conforme Winnicott, quando o ambiente falha, reiteradamente, teremos um bebê que precisa defender-se sozinho contra o terror de suas fantasias. A falta de sustentação da agressão pela mãe (cuidador) gera medo na criança quanto a sua própria destrutividade e desconfiança na sua capacidade de fazer reparações, podendo gerar um retrocesso em seu desenvolvimento.
Nestes casos, a criança passa a reagir às falhas do ambiente, confrontando, perturbando ou se comportando mal, fazendo isso como um pedido implícito de controle por pessoas fortes, confiantes e amorosas. Quando o pedido pode ser escutado e a falha ambiental corrigida, a capacidade de confiar é retomada. E assim, o desenvolvimento saudável segue seu curso e a criança pode vir a ser alguém preocupado consigo mesmo e com os outros.
Winnicott, Donald W. O desenvolvimento da capacidade de envolvimento (1963). In: Winnicott, Donald W. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
Autora: Cristina Chazan – membro efetivo do ESIPP, Psicóloga da FASE/RS e Psicanalista em formação (CEPdePA).
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